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SONATA Nº 2 (SONATA SABARÁ)

Domingos Sávio Lins Brandão

 

Poucos são os exemplos de música profana executada no Brasil Colonial, principalmente para teclado. A análise que apresentaremos é sobre uma das raras partituras desse tipo, pois trata-se de uma Sonata em três movimentos para teclado, de autor desconhecido, recolhida no Arquivo da Sociedade Musical Santa Cecília de Sabará.

Para o desenvolvimento deste estudo, optou-se, num primeiro momento, pelo processo de análise estrutural formal de seus três andamentos ou movimentos, recurso disponível para que se chegasse à formulação de algumas conclusões parciais que nos permitem estabelecer, por aproximação, a época em que provavelmente ela foi escrita.

Num segundo momento, partimos para considerar os elementos estruturais salientados pelo interpretação da peça. Ou seja, foram acrescentados à nossa análise, questões que emergiram a partir da execução da Sonata nº 2. À nossa visão de analista acrescentamos elementos que foram trazidos à tona a partir da execução da peça, ou seja, da ótica do intérprete. Aliás, os antropólogos e os sociólogos da arte já discutiram este assunto, sobre qual visão é a mais verdadeira: a do observador ou a do agente social, aquele que vive o contexto, pois, a visão deste último nem sempre corresponde à visão do analista, ou vice versa. Por este motivo, acreditamos que a apreensão de uma verdadeira "poética musical" só é possível se levamos em consideração tanto a visão do analista, em sua posição de distanciamento crítico com em relação ao objeto de estudo, como do músico intérprete, em sua posição equilibrada entre o subjetivismo e a objetividade musical. Agradecemos, portanto, ao cravista Antônio Carlos Magalhães por suas preciosas observações e colaboração nesta análise.

Como verificar-se á durante nossa exposição, os dados estruturais e formais identificados nos três andamentos da obra mostraram-se suficientes para que se estabelecessem interligações com os conjuntos estruturais da prática musical que diferencia as criações elaboradas segundo os estilos clássico e rococó do século XVIII. Optou-se ainda pelo consenso aproximativo entre as estruturas usadas, sua freqüência, mutações e alternâncias musicais.

A Sonata é composta em três andamentos:

1º) Allegro, com estrutura formal muito próxima dos esquemas da Sonata-Forma bitemática, textura típica do classicismo do século XVIII;

2º) Adagio, com estrutura formal do lied instrumental, típica dos andamentos lentos empregadas nas composições relacionadas com o Gênero Sonata. Sua textura é clássica, segundo os padrões do século XVIII.

3º) Rondó, de estrutura irregular quanto ao esquema formal, textura típica do estilo rococó cravístico.

1o ANDAMENTO: ALLEGRO

Notado em sib M, o andamento se divide em duas grandes Partes:
- Parte A: correspondendo à Exposição da Sonata-Forma, abrangendo os compassos 01 a 37.

- Parte B: correspondendo ao desenvolvimento da Sonata-Forma, abrange os compassos 37 ao 92.

- Não pode ser afirmado que há uma reexposição, segundo a praxis do século XVIII. Esta Reexposição é preparada no compasso 74, mas não é estruturada, fato este que chamou muito nossa atenção. 

1. Da exposição: O tema A é exposto no tom de sib maior, apresentando-se em três seções:

    1. Compassos 01 à primeira semicolcheia do compasso 05
    2. Compassos 05 ao 08
    3. Compassos 09-10 com conclusão, de caráter cadencial.

Percebe-se, de imediato, que o autor usou o seguinte material temático:

Em a, aproveitamento do acorde de tônica de sib maior em forma de escala descendente, valores apoiados por colcheias, com significativas pausas de idêntico valor e sustentação harmônica na tônica.

Em b, com o apoio harmônico da tônica e da dominante, o autor apresenta a escala ascendente de sib maior (compasso 05), que se alterna novamente, com a escala de sib maior, e novamente com a repetição do desenho anteriormente ilustrado, num jogo de registros grave-médio, médio-agudo, agudo, jogo este típico da escrita setecentista para instrumentos de teclado.

 Em c, temos a repetição do motivo:

 A ponte modulante, estrutura-seção típica da Sonata-Forma, é claramente delineada nos compassos 12 e 13, fixando no compasso 14, o tom de dó maior, dominante da dominante de sib maior.

A fixação em dó maior no compasso 14 serve-nos como elemento de concentração de atenção. De fato, no compasso seguinte (no 15), o autor apresenta o tema B em fá maior, tonalidade da dominante de sib maior, exatamente de acordo com o formulário usado na composição de Sonatas-Formas durante o século XVIII e muitas das obras do mesmo gênero durante o século XIX:

a) Compassos 15 ao 18, num total de quatro compassos, caráter melódico muito mais audível do que em qualquer seção do tema A.A este respeito deve ser dito que o contraste: "tema A positivo, apoiado por ritmos incisivos e motivos harmônicos; tema B mais melódico, "cantabile", quer dizer, de origem vocal".

 De acordo com a maioria absoluta dos tratadistas o contraste entre temas A e B na Sonata-Forma revela subliminarmente e através da música, a concepção da oposição de princípios, vigente no pensamento dialético.

b) A Segunda seção do tema B nada mais é do que a pequena variação irregular da seção a, num total de 02 compassos (compassos 19 a 20).

 c) a seção c , abrangendo os compassos 21 e 22,com repetições regulares nos compassos 23-24, apoia-se nas progressões de origem harmônica alterando os seguintes desenhos:

 As harmonias usadas para a exposição ao tema B são basicamente as de tônica e de dominante de fá maior.

Nos compassos 25 e 26, o autor caminha novamente para sib maior, mas volta a fá maior no compasso 27, preparando a coda da Exposição. Esta é claramente delineada em fa maior, com apoio dos seguintes incisos:

= retirado da seção a do tema A

=este inciso será aproveitado no desenvolvimento

= este inciso é estruturado em oitavas desdobradas , à maneira setecentista pré-clássica, numa fase em que se testavam as adaptações do "baixo barroco", realizado concomitantemente por instrumentos de corda e teclado, para os baixos de textura puramente cravística.

Deve ser dito ainda que este inciso serve ao Autor para a figuração das harmonias de tônica (muito insistente à moda dos pedais), subdominante e dominante de fa maior, tonalidade na qual é concluída a Exposição, aliás, exatamente segundo o formulário previsto na Sonata-Forma setecentista, bitemática, de estrutura ternária (compassos 36 e 37).

 2. Do Desenvolvimento :antes de tecermos considerações sobre a estrutura formal do Desenvolvimento propriamente dito, devemos nos deter na questão da ausência de uma Reexposição, terceira grande seção, período ou "parte" da Sonata-Forma, a qual, juntamente com a Exposição e o Desenvolvimento, é que nos permite classificar uma obra do gênero sonata como sendo de "estrutura ternária".

De fato, após o trabalho temático, característico do Desenvolvimento, realizado ao longo dos compassos 38 ao 75,seria de se esperar uma volta ao tom de sib maior, no qual seriam reexpostos os temas A e B, o que significa, em termos musicais, e de acordo com os padrões de composição vigentes no século XVIII-aliás, a partir do século XVII isto é prática corrente-a conclusão definitiva e indiscutível na tônica inicial, no caso, sib maior. Do ponto de vista não apenas tonal, como também, histórico, o que caracteriza uma obra "'tonal" é a convergência para a tônica, após uma série de pontos de divergência, interrupções, desvios, ou mesmo, ousaríamos dizer e isto se aplica aos românticos de "devaneios" , pontos estes que permitem ao compositor tecer sua trama, narrar sua "estória", seu enredo. No entanto, após percorrer todos estes pontos da trama tonal, e segundo própria lógica e a tradição tonal, espera-se a volta à tônica inicial, tonalidade na qual a obra é concluída. Podemos afirmar que a maioria quase absoluta das composições musicais, sob todas as fórmulas, estruturas, títulos, e de acordo com gêneros e estilos variados, identificadas como "tonais", estão escritas de acordo com este principio geral: a tônica é o ponto de repouso absoluto, e este repouso deve coincidir com a própria conclusão da obra musical.

No caso em questão, o Autor não apenas deixou de reexpor os temas A e B; ele não volta a sib maior e conclui o andamento em mib maior, tonalidade da subdominante de sib maior, procedimento que constitui uma exceção digna de registro dentre centenas de obras dos séculos XVII,XVIII e XIX que podem ser claramente definidas como tonais. A respeito das fórmulas usadas pelo compositor para concluir a obra, procederemos à análise na medida em que formos avançando no estudo do Desenvolvimento.

Do compasso 38 ao 41 o Autor aproveita a seção a do tema A para realizar o trabalho temático, ainda em fà maior. Nos compassos 42, 43, 44.e 45, em fà maior,é usada a seção b do tema A. Caminhando, através da mesma seção, para sol menor, a partir do compasso 46, esta tonalidade, relativa de sib maior, é claramente definida no compasso 48.Neste compasso e com a interrupção de apenas uma pausa de colcheia, o Autor usa, ora em sib maior, ora em sol menor, a seção a do tema A. A partir do compasso 49; e ainda com o uso da seção a do tema A, o Autor caminha para mib maior, tonalidade da subdominante de sib

maior. Neste tom, nos compassos 52 e 53, o Autor usa a seção b do tema A. A partir do compassos 54 e caminhando para lab maior, tonalidade da subdominante da subdominente de sib maior, inicia-se o trabalho de variação ornamental, tipica da escrita clássica do século XVIII, apoiada pelo inciso abaixo, usado na coda:

No compasso 60-61-62 e 63 defrontamo-nos com outra novidade: o Autor introduz um motivo inteiramente inédito, apoiado pelo inciso:

Segundo o formulário da sonata-forma, este procedimento é imprevisto e quase inexistente nos clássicos. Encontramos um exemplo significativo de temas isolados e inéditos no Desenvolvimento de obras como o Concerto em Ré Maior, op.61, para violino e orquestra, de Beethoven, por exemplo.

O motivo inédito é variado por ornamentação, em tercinas (característica marcante, até aqui, da técnica de variação do Autor), nos compassos 64, 65 e 66. Nos compassos 67,68, o compositor conclui esta apresentação através de fórmulas tipicamente cadenciais, evidenciando a tonalidade de sol menor

A passagem fugaz por sib maior no compasso 70, nos leva imediatamente ao tom de mib maior. Harmonias apoiadas na tônica e na dominante de mib maior são relevadas pelos arpejos realizados no registro médio-agudo. Finalmente, a conclusão em 75,já firmada. em sib maior, e com o uso do mesmo recurso rítmico empregado para a preparação do tema B na Exposição (compasso 14); faz-nos antever a Reexposição que, no entanto, não ocorre, ou se ocorre, é de forma inédita. De fato, todo o trabalho temático apresentado entre os compassos 73 e 93, apoiados por tercinas, arpejos, reminiscências do tema A. ou do tema B esta escrito de forma irregular; para ser mib maior, o lá deveria ser bemol e não é. Porém, as harmonias básicas ,estão claramente estruturadas em mi bemol.

Resta ainda dizer uma palavra sobre os sinais de ritornello; indicados nos finais tanto da Exposição(compasso 36.) quanto ao Desenvolvimento. Esta indicação nos leva, à reafirmação de que a obra se subdivide, do ponto de vista formal, em duas grandes seções, ficando assim esquematizada:

Parte A -ritornello= A-A:

Parte B -ritornello= B-B

Usando, portanto, da concepção bitemática, com um imprevisto terceiro elemento temático no Desenvolvimento (em Sol menor, apresentado nos compassos 60 ao 63),o Autor não conclui a estrutura ternária da Sonata, assim como não volta à tônica inicial, sib maior, o que foge tanto do formulário teórico quanto da, praxis da Sonata-forma criada ao longo dos últimos decênios do século XVIII e durante o Movimento Romântico do século XIX, em obras de Autores como Beethoven, Schumann, Schubert e Brahms, por exemplo.

A despeito de todas as conjeturas, hipóteses, esforços de análise estrutural e formal., não podemos concluir, sem incorrer em vários enganos, a respeito das intenções do compositor, mesmo conhecido e contemporâneo, uma vez que, imaginamos, muitos dos recursos empregados em qualquer processo composicional são o resultado de uma assimilação a nível inconsciente, atingida pelo lento, progressivo e repetitivo contato, permitido por inúmeras experiências, dos indivíduos com a praxis musical de uma determinada época. Apesar disso, devemos, uma vez mais fazer uma menção especial aos recursos empregados pelo autor da Sonata No.2 para concluir o I Andamento. Considera-se, nestas citações, que o I Andamento foi finalizado em mib maior.

Observe-se que a seqüência musical dos compassos 67 e 68 ao mesmo tempo que concluí a variação do motivo secundário apresentado nos compassos 62 ao 63,e variado nos compassos 64 ao 66, interliga esta seção a uma outra, não citada de forma destacada durante a análise formal. A seção que vai do compasso 69 ao 75 é a seção típica de conclusão do Desenvolvimento.

No compasso 76, ao invés de apresentar uma Reexposição, o Autor continua o processo de trabalho temático típico do Desenvolvimento, .introduzindo variações em tercinas e grupos de quatro semicolcheias, numa reminiscência das seqüências em forma de escala usadas na Exposição. Este processo estende-se até o compasso 80, a partir do qual se dá início à uma cadência (Compassos 80 a 86).

O Allegro da Sonata vai terminar com a relização de uma coda (compassos 87 a 93), na tonalidade da subdominante da tônica, fugindo assim da praxis composicional de então.

IIº ANDAMENTO: ADAGIO

Concebido também em sib M , o Adagio apresenta, a mesmo tempo, a estrutura dos lieder instrumentais típicos dos andamentos lentos das obras relacionadas com o Gênero Sonata e o sentido de um cantabile permanente.

Apesar das interligações sutilmente estruturadas pelo autor, as quais exatamente nos fazem sentir o fluir constante da "melodia contínua", podemos perceber a subdivisão do Adagio nas seguintes seções:

PARTE A

Compassos 1 ao 10

Em sib M, com ritornello, é a seção mais fechada, concluída pela fórmula cadencial V-I.

PARTE B

Compassos 11 ao 22

Firmado no tom de sib M, no compasso 11, esta seção caminha desta tonalidade para a da dominante, fá M, claramente definida no compasso 18. Esta mudança de centro tonal parece servir ao Autor para o desenrolar natural da melodia que canta continuamente nos registros médio e agudo, sem nenhuma forma de interrupção musical. A base firmada em fá M, com a própria melodia, prepara nos compassos 21 e 22, uma volta à Parte A.

PARTE A (reexposição)

PARTE C

Compassos 23 a 32.

Inicia-se no tom de Sol m, e com expressiva indicação de intensidade FF. O fluir melódico é habilmente conduzido pelo Autor. A mudança de tonalidade e a indicação de FF no compasso 23, transformam os compassos 23-24 em compassos de ligação não apenas harmônica, como também , melódica. Isto significa que não há quebra da fluência melódica, porém, percebe-se uma mudança acentuada no afeto da peça. Idêntico procedimento usa o Autor nos compassos 30 e 31, compassos de fechamento da Parte C e de ligação entre esta seção e a seguinte.

PARTE D

Compassos 33 ao 38.

Iniciada em fá M no compasso 33, é, em termos temáticos, a mais independentes de todas as outras, com referência à temática inicial. Apoiado pelo pedal de tônica de fá M, desdobradas em oitavas rebatidas, o motivo da Parte D apresenta-nos o uso expressivo da subdominante estruturada com terça M, alternada com Terça m num jogo típico de claro escuro, evocando o gosto do barroco instrumental ou mesmo o Sturn Und Drang. No caso desta Parte, em fá M o acorde de subdominante apresenta-se ora maior, ora menor conforme abaixo: 

Como elemento de ênfase de claro escuro das harmonias, o baixo, pedal em fá, canta sutilmente sol b. A sequência fá - sol b no baixo (37-38) confere ao contexto dinâmica muito sutis prenunciadoras do gosto romântico das primeiras décadas do século XIX.

O compasso 38 no segundo e terceiro tempos apresentam os elementos de ligação entre a Parte D e a Parte A, em si b M, a qual é apresentada sem inovações nos compassos 39 ao 48 fechando o Adágio.

Devem ser destacados os seguintes elementos estruturais do Adágio que condicionam seu caráter de lied instrumental:

1º. A escrita homofônica apoiada por uma melodia em cantabile, sustentada por harmonias simples, a base de tônica, subdominante e dominante. De origem vocal, com evidentes recorrências ao estilo setecentista do bel-canto italiano, o tipo de temática usada pelo autor constitui uma das conquistas mais expressivas na evolução da práxis musical dos séculos XVII e XVIII. De fato, iniciando-se no campo da criação composicional da música vocal dramática, o tipo de concepção melódica verificada no Adágio ora analisado é o resultado de sucessivas pesquisas de adaptação da vocalidade do Recitativo, do Arioso e da Ária para as canções instrumentais.

Podemos observar os seguintes elementos advindos da questão tratada acima.

  1. o ponto de partida para elaboração melódica é o inciso (1).
  2. o uso do inciso ( 5 ) que é variado em (8) ou, ainda, em (30).
  3. embora encontremos oitavas desdobradas (ou quebradas) e a estrutura do albertino nos baixos, os apoios harmônicos são feitos quase sempre por oitavas.
  4. é interessante observar o "jogo de timbres-naipes" transferido da textura orquestral para a de teclado. Assim é que, o cantabile, feito através do arpejamento da dominante, em semicolcheias, no compasso 11, é respondido, em registro grave também de forma arpejada na tônica, no compasso 12. Usando este tipo de jogo, o Autor o aplica novamente nos compassos 25-26.

  5. A temática é essencialmente melódica, homofônica, um longo canto para instrumento de teclado. As Partes B e C constituem-se em naturais desdobramentos da Parte A. O canto muda apenas na Parte D, sem no entanto, quebrar a continuidade do cantabile.

2º. Na concepção geral do Adagio, destaca-se a evidente preocupação do Autor em valorizar os aspectos dinâmicos, agógicos do lied, que evocam a estética do Sturn und Drang. Isto está claramente definido na partitura através da indicação de sinais precisos. Ao contrário do que ocorre no 1º e no 3º Andamentos da Sonata, nos quais são indicados apenas os sinais do P e F, no Adagio, além destes encontramos sinais expressivos como "smorz...", "rinf." Seguido de "P". Estas indicações, associadas às indicações dos sinais de articulação, de fraseado, e ao próprio andamento, do grupo dos Lentos, reforçam o caráter cantabile do lied. E, se podemos ousar, ao menos no plano do consenso, e não do da análise estatística diríamos que, de todos os Andamentos, este é o que apresenta estruturas musicais mais complexas, o que nos faz remeter aos recursos composicionais empregados nas obras mais sofisticadas de Carl Philipp Emanuel Bach, Haydn, Mozart, assim como nas obras da primeira fase criativa de Beethoven, e nas obras do compositor português Francisco Xavier Baptista.

IIIº Andamento: Rondó

Embora escrito com na armadura de sib M, sua tonalidade é a de Mib M. Apresenta a seguinte estrutura formal, a qual é aqui analisada tomando-se por parâmetro referenciais os cortes típicos da seções fraseológicas e as mudanças de centros tonais.

PARTE A (Tema principal ou exposição):

Firmada em mib M, compassos 1 a 16.

- Seção a (compassos 1 a 9).

- Seção a’ (compassos 9 a 16) é a repetição ligeiramente modificada de a.

PARTE B (1º episódio)

Compassos 16, anacruse, ao 24.

É inicialmente estruturada em mib M, o que em termos esquemáticos, foge ao formulário estrutural do Rondó pois, não há mudança do centro tonal.

- Seção b’ (compasso 16, anacruse em semicolcheia, ao 20): A primeira seção da Parte B é ritmicamente diversa da Parte A. Portanto, há contraste rítmico, (ritmo mais marcado), e não de tonalidade. Observamos que trata-se de uma variação ornamental da temática da Parte A.

- Seção b" (compassos 21 ao 24): ainda em mib M, apresenta-se diferenciada em relação à temática anterior, ou seja, temos então a primeira novidade temática em relação à Parte A, com ritmo menos incisivo.

PARTE C (2º episódio)

Compassos 25 ao 42.

Iniciando-se com um ataque em sib M, consideramos como parte contrastante, isto é, inédita.

  • Seção c’ (compassos 25 ao 27)
  • Seção c" (compassos 28 ao 34)
  • Seção c"’(compassos 34 a0 42)

Observa-se, em todas elas, a independência temática já prenunciada na seção b’ (independência temática em relação à temática da Parte A.)

A conclusão desta seção no compasso 42 prepara a volta à tônica através do seu acorde de dominante com sétima, desdobrada em fusas no registro agudo.

PARTE A (repetição do tema principal ou reexposição)

A Parte A é reexposta

PARTE D (3º episódio)

Vai dos compassos 43 ao 76 é marcado por contrastes de climas.

No compasso 43, tom de dó m, relativo de mib M.

  • Seção D’ (compassos 43 ao 46)
  • Seção D" (compassos 46, anacruse em colcheia, ao 53): Frases simétricas, em forma de progressão melódica. A tonalidade dos compassos 47 ao 50 é de dó m e dos compassos 51 ao 53 é a de mib M.
  • Seção D’" (compassos 54 ao 75): com variados ritmos, ornamentos, tonalidades e passagens virtuosísticas:

Compassos 54 ao 56 – mib M, com apoio de colcheia pontuada e semicolcheia no baixo.

Compassos 57 a 62 – variações ornamentais em tercinas com modulação para lab M (subdominante de mib M) a partir do compasso 59.

Compassos 63 ao 65 – grupos de fusas caminhando de lab M para sib M

Compassos 66 ao 75 – sib M com expressivos pedais de tônica, primeiro no registro grave (66 ao 70) , depois no registro médio (71 ao 74). Firma-se novamente o pedal no baixo do compasso 75 através de significativa fermata, sob o qual se executa uma pequena cadência.

PARTE A (repetição do tema principal ou reexposição)

Compassos 76 a 91

Finalmente, a última apresentação da Parte A, reexposta de forma idêntica à dos compassos iniciais do Rondá, que serve para concluí-lo

Assim, a estrutura formal do Rondó, bastante elaborada, é a seguinte:

A-B-C-A-D-A.

Quanto ao tipo de escrita e à textura musical usada pelo autor, destaca-se, desde o início, a alternância em valores figurados em grupos de fusas e de semicolcheias. A presença do baixo albertino, também estruturado ora em fusas ora em semicolcheias, é constante. Progressões sucessivas em forma de notas repetidas (registro médio-agudo, correspondendo à mão direita do tecladista) e em forma de arpejos, são outras características marcantes.

A conjugação destas estruturas, e a repetição da seção a da Parte A, de forma variada, nos fazem definir o sentido da textura cravística ou fortepianista ao gosto e de acordo com o denominado estilo "rococó", ao mesmo tempo em que explora elementos contrastantes típicos do chamado "empfindsan" ou Sturn und Drang.

Algumas considerações finais

0 trabalho de análise formal no campo da música permite-nos ,através de meios nem sempre autênticos, obter uma tênue visão de um determinado fenômeno no caso, a obra musical analisada para fins diversos.

Quando um intérprete se detém sobre o estudo analítico da obra a ser executada, o emprego de recursos, conto o da divisão do todo em partes delimitadas, pode fornecer-lhe parâmetros para. a delimitação dos planos dinâmicos, por exemplo. Quando, no entanto, nos voltamos sobre o estudo de uma obra de autoria e de época desconhecidas, para concluirmos exatamente sobre a provável procedência dessa obra através de suas estruturas, o processo analítico pode tornar-se um recurso discutível.

De fato, no caso da Sonata N.2,toda e qualquer conclusão pode ser feita em um nível apenas conjectural. E por mais que nos esforcemos neste sentido, resta ainda a consciência de que os parâmetros empregados para os termos de comparação estilística são extremamente artificiais, afinal de contas, tomar algumas das produções composicionais dos clássicos (Europeus vienenses do século XVIII ) como pontos referenciais para a avaliação de uma obra recolhida em Sabará pode constituir-se em uma técnica de análise musical improdutiva.

Além do distanciamento entre o modus vivendi vienense e o brasileiro - especificamente o mineiro, caso esta seja uma Sonata produzida em Minas Gerais - devemos concluir que expressões como "estilo barroco", "estilo rococó" ,"estilo clássico", por exemplo, indicam-nos, antes de tudo, fórmulas de expressão verbal de natureza acadêmica que nem sempre são suficientes para traduzir a extrema e sutil complexidade dos recursos composicionais empregados na maioria das vezes, de forma harmoniosa por um mesmo autor, em uma única obra musical. O entrelaçamento de estilos, fato sempre constante em todas as épocas, constitui-se em uma dificuldade maior quando nos detemos no estudo de obras musicais criadas entre os últimos decênios do século XVIII as primeiras décadas do século XIX. Recorrer a autores, representantes do denominado Movimento Clássico da Escola vienense, é outra atitude de natureza academicista que, se muitas luzes pode nos fornecer, por outro lado; leva-nos a conclusões parciais e mal formuladas.

Como, e salvo se é do nosso desconhecimento, os recursos estruturais e formais identificados na Sonata no.2 podem sê-lo também em várias obras de autores setecentistas europeus, e até mesmo em compositores que viveram nos primeiros decênios do século XIX, inclusive no Brasil, como o Pe, José Mauricio e Marcos Portugal, por exemplo, somos levados, por absoluta carência. De outros meios, a lançar mão da análise estrutural e formal no campo da música, com o objetivo de vislumbrarmos o que teria sido o movimento musical do Período Colonial em Minas Geiais.

Concluindo o estudo das estruturas e das formas empregadas pelo Autor desconhecido da Sonata no.2, podemos fazer algumas afirmações preliminares, sobre as quais as probabilidades de erros interpretativos são

mínimas. Independentemente do fato de ser o Autor mineiro ou não, ou de Ter escrito a Sonata no.2 nos últimos anos do século XVIII, ou já no século XIX, observa-se:

1°) O Conhecimento das possibilidades técnicas de instrumentos de teclado que ficou evidenciado pelas texturas empregadas nos três andamentos da Sonata no.2.Grosso modo, diríamos que o Autor escreveu com acerto técnico, para um instrumento de teclado, empregando ,com significativa frequência, estruturas como arpejos, escalas, progressões melódicas, baixos em oitavas justapostas ou quebradas, baixos albertinos, por exemplo, todos estes recursos típicos para a escrita pianística e mesmo cravística:

2o) A assimilação dos esquemas tonal-harmônicos, com insistência, nos três andamentos da Sonata no.2,das funções de tônica, subdominante e dominante, funções básicas e minimas que caracterizam o jogo tonal como, também, a interrelação de A) planos formais e uso de novos centros tonais; b) a relação dos graus de aproximação dos "tons vizinhos" e a tonalidade principal, no caso, disputada por duas gamas tonais: sib maior e mib maior, única dificuldade de conclusão musical encontrada por nós na análise feita.

3o) O dominio dos esquemas formais tanto do Lied. Instrumentai (IIo andamento) e do Rondeau (IIIo Andamento),quanto da Sonata-forma bitemática:

paira a dúvida sobre a ausência de uma Reexposiçao bem caracterizada no Io Andamento. Alémdisso, o pleno conhecimento da relação entre os andamentos, tempos ou movimentos da sonata para teclado:

 

Io - sonata-forma

IIo - Lied instrumental

IIIo - Rondeau

4o) O conhecimento das sinalizações indicativas de graus de intensidade, dos tipos de articulação usados em instrumentos de teclado, e segundo a concepção setecentista, e de algumas das possibilidades de graduação da sonoridade e da dinâmica musical.

Poderíamos citar muitos outros recursos usados pelo autor como sendo o resultado de um tipo de conhecimento e de assimilação dos processos musicais comumente empregados na música Setecentista e européia.

Resta-nos pois, citar as mais freqüentes indagações que nos ocorreram durante o processo analitico. A primeira entre todas, como pode ser previsto, refere-se à relação entre este desconhecido compositor e os contatos que ele teria mantido com mestres de música de sua época e, consequentemente, o acesso às obras de procedência européia que certamente Serviram-lhe de modelo.

 A segunda indagação refere-se è. dúvida sobre a relação entre o autor e a comunidade mineira onde a obra teria sido composta, ou pelo menos executada. Em quais circunstâncias isso teria ocorrido? Para que tipo de público?

Qual o tipo de valorização social, cultural ou artística pode ter sido atribuída à execução de obras como a Sonata no.2 ? Qual tipo de público teria participado da execução musical da Sonata no.2.? Que significado uma obra instrumental de concepção originalmente européia teria na vida de determinados indivíduos no periodo Colonial Mineiro?

Muitas outras indagações poderiam ser aqui descritas. No entanto, a mais intrigante entre todas refere-se ao fato de ter sido recolhida em Sabará uma partitura musical com as características analisadas na presente exposição.